domingo, 11 de julho de 2010

Beatriz, o meu nome é Bernardo. (pt 2)

Não! Ela nunca tinha visto os azulejos da casa de banho através da porta das
traseiras, já que não era costume ela entrar pelas traseiras.
Trazia vestido o casaco de sair, aquele que era guardado religiosamente para
ocasiões mais importantes.
A verdade é que nem ela sabia a razão de o estar a usar. Ultimamente tinha
chegado à conclusão que havia deixado de medir consequências (e talvez por
isso estar a usar o casaco).
Ah! e como eram bonitos os azulejos daquela perspectiva.
O cenário era curioso; um tanto ou quanto estranho:
era ela, à porta com o casaco vestido e com um sorriso parvo a olhar para azulejos.
Do lado esquerdo estava um balcão de cozinha no qual ela se gostava de sentar quando cismava estar sozinha,ou quase sozinha ...
Acho que de quando em vez ela desviava o olhar para se certificar que estava mesmo sozinha. Era uma rapariga calada, embora os seus monólogos em cima do balcão fossem ricos de uma maneira surpreendente. Acho que naquela altura ela tinha a certeza de estar sozinha. De facto estava, perante os olhos do resto do mundo, mas a nível da consciência as coisas passavam-se de maneira diferente.

-Ultimamente tenho sido mais tu do que eu própria, e não me venhas com teorias demasiadamente teóricas de que és mais forte que eu e que eu só te uso como defesa a mim própria e a tudo aquilo o que ando a sentir. Sou a única que comprovo a tua existência e a única que é idiota ao ponto de estar a falar sozinha em cima de um balcão. Sozinha, ouviste? Ultimamente não me respondes e nem sequer me dás hipótese de explicar o que se passa! Apesar de eu saber que sabes o que se passa, porque apesar de já quase não te manifestares, eu ainda te sinto.
Eu não tenho culpa de ser eu o objecto exterior e não a consciência, Maria Francisca! E não tenho culpa que aches que não te dou ouvidos quando tens a perfeita noção que tu és difícil. És tão difícil... Acho que temos que aprender a usar a 1ª pessoa do plural de outra forma.
Maria, estou tão cansada. Estou cansada de não te ter e cansada de não me ter.
É isto, eu não nos tenho a nós e estou a ficar reduzida ao meu físico e à minha parte pouco-sentimental que já se começa a fartar de ti. Tenho saudades nossas, e só tuas e só minhas, mas principalmente tenho saudades de saber o meu nome. Tenho sido tão tu que já nem me lembro do meu nome, tenho sido tão tu que já nem me lembro de mim. Acho que agora estou naquela fronteira entre ti e mim que já havíamos estabelecido por simples ironia de nos apetecer estar separadas. Ah, eu já pensei em fugir, mas e quem me vê achará que sou covarde? Não que me importe o que pensam os outros de mim, mas eu irei pensar também que sou covarde e isso não traz benefícios.

Ela calou-se. Calou-se e sorriu, como quem sorri só por sorrir. Um sorriso parvo mais cheio de sorriso que jamais tinha sido presenciado.
E se o resto do mundo soubesse sequer o que lhe passava por trás daquele sorriso ...
Não! Jamais seria desvendada a vida toda escondida além daquela porta.