quinta-feira, 19 de maio de 2011

adormeci, Benjamim


Era Inverno, Benjamim. Um Inverno frio feito à semelhança daquele que levou o teu corpo para longe. O chão: frio. O chão sem ti, frio. A tua partida levou com ela o meu sossego. Deixei de fechar os olhos durante pouco mais de duas luas. Não me lembro do que pensava enquanto não dormia. Pensava, talvez, no carteiro. O carteiro vinha cedo, ternamente envolvido na escassa luz que o sol mostrava nas manhãs de Inverno. Olhava para mim na janela e para as minhas mãos pálidas que seguravam uma caneca de chá. O carteiro era já o único ser que me podia trazer noticias tuas, em folhas de papel dobradas em três. Ele passava. Deixava a esperança do dia em que trouxesse uma carta tua e ia embora. Igualmente envolvido por uma luz que aos meus olhos se tornara mais escura. No meu corpo, tremia a pele cansada e os olhos cansados de não se fecharem. Nos meus pés, sentia-se o frio do chão frio. Quase em todas as manhãs o mesmo: os olhos do carteiro. O meu desconsolo. A pele das minhas mãos pálidas que fazia tremer a caneca do chá. Houve uma manhã em que as minhas mãos não tremeram. O carteiro passou e parou. Olhou-me e entregou-me uma carta. Não era tua, Benjamim. Só a abri ao cair da noite. Era de um homem. Um homem que não tu e que não conhecia o cheiro das minhas lágrimas. Mas o homem sabia de ti e queria contar-me. Pedia-me que o encontrasse no parque num dia ameno. Eu fui, Benjamim. Sonhei numa noite. Presságio de que o dia que se seguia ia estar ameno. Sonhei com barulhos de chaves nos bolsos de um carteiro que não o do costume. Era mais alto e mais feliz.
O homem não fez questão de definir horas portanto eu não chegaria demasiado tarde ou demasiado cedo. Peguei no meu casaco branco, descosturado na manga esquerda por falta de bom uso, e saí. Pelo caminho ia pensando no carteiro do meu sonho. Talvez aquele tivesse sido o barulho das chaves da sua casa onde ansiava todo o dia por chegar. Onde dormia todas as noites. Acabei por chegar ao parque. Estava mais jardim do que da última vez. Tinha mais árvores e estava mais ruidoso. Sentei-me num banco que estava apoiado por duas pedras brancas sujas pelo verdete das águas do Inverno. Era tarde e chegou o homem: velho. Branco pelos dias que lhe passaram por cima. Não sabia quem ele era, mas era ele. Sentou-se ao meu lado. Sereno, tirou do bolso interior do seu casaco preto gasto dois cigarros. Acendeu um e deu-me o outro, acendendo-o de seguida. Fumámos os dois. No fim perguntou-me se tinha esperado muito. Fechei os olhos, suspirei. Disse que tinha chegado pelo cair da noite, à espera de encontrar o meu parque do costume. Mas era agora um jardim e a noite apoiava-se sobre ele naquela escassa luz de Inverno. Passados alguns minutos de um silêncio pouco constrangedor disse-me que às vezes a parte boa da transformação era nunca perder a capacidade de nos surpreender. Disse-me ele está morto. Encontraram-no já assim, no meio de chão. Sem sangue e sem vida. Dizem que morreu de coração. Outros dizem que morreu de frio. Disse-me que encontraram uma carta e ele, homem branco e velho, tinha-a em sua posse. No seu bolso junto dos cigarros para a sentir cada vez que lhe apetecesse fumar.
O homem velho deu-me a carta. Era tua. Trazia o cheiro da tua pele agora morta e arrefecida. Fui para casa. Dormi. Dormi até se fazer noite de mais um dia. Acordei. Sentei-me na janela e abri a carta. Li-a até lhe gastar as palavras, até de manhã.Sentia cada vez mais o teu corpo frio no chão frio e continuava a ler. Revivia cada um daqueles dias de Inverno à varanda e cada dia em que o parque era parque. Continuava a ler. Por cada linha que percorria via o teu corpo junto ao meu. Cada palavra aproximava-me da tua morte e de ti naquele chão onde te encontraram. O último chão que pisaste sentiu-te morto sobre ele. Cada palavra trazia uma lágrima minha na tinta da tua caneta e o papel amolecia. Era já manhã. O carteiro passou e olhou-me. Vesti o casaco e fui comprar cigarros.

1 comentário:

Inês disse...

hum, obrigada pela opinião! :D